Sexta-feira , 18 de Março DE 2011

Acção ... Muita Acção

Pedem-me acção e acção terão. Gosto de desalinho mas quando é para seguir regras seguem-se regras. Pensando bem gosto do equilíbrio que os opostos me trazem. Satisfaz-me que já possa falar de amor. Juntemos então a semana passada com esta. De caminho juntemos ao amor a acção e vamos ver o que isto vai dar. …Perde-se na multidão que circula e ruma aquilo que prometemos não falar.Desce a Rua do Carmo apressada. Sente-se rejuvenescida numa tarde bem passada. Gosta de Lisboa mas para ser mais objectiva do que gosta mais é do cheiro a Lisboa. Enquanto caminha tem consciência que ao perder-se nos rostos dos outros se perdeu no tempo. Liga. Diz-se atrasada e diz que o quer. Derrete-se na resposta e sorri com aquele sorriso idiota de quem se sente apaixonado.

 

Soltam-se gemidos enquanto se sente prazer. Murmuram-se juras de amor sentidas. Entrega-se o corpo como se de sobrevivência se tratasse. Luta-se corpo a corpo e empata-se na vitória. Somos dois, somos um. Alterna-se entre risos e sorrisos. Desarrumam-se leitos e arrumam-se vontades. Fundem-se cheiros que se entranham na pele. Amam-se com desejo e Abraçam-se numa pausa sentida. Partilha-se numa cumplicidade indescritível e pede-se mais. Sempre mais. Despedem-se numa saudade antecipada.

 

 Fiquemos por aqui no que respeita a sensualidade. Não queremos censura erótica nem tão pouco impedimentos de escrita. Saboreemos o que foi escrito e esperemos pelos próximos capítulos. Acabe-se por momentos com o romantismo e avance-se com a acção que o número de palavras está-se a esgotar.

 

Não gosta quando a porta se fecha atrás de si. Dói quando o deixa. Os gestos saem automáticos enquanto entra no carro. Ainda sente os beijos dele nos lábios. Sente o toque na pele e sente ainda mais o cheiro. Pensa no quanto gosta do cheiro. O pensamento voa enquanto os lábios acompanham a musica que toca no rádio. Estaciona em frente a casa. Sorte ou simplesmente vontade? Não percebe o porquê de lhe perguntarem se não tem medo. O medo impede-nos de viver, pensa enquanto sai do carro.

 

O som dos gritos despertam-na do transe erótica em que se encontra. Olha para o fundo da rua e tenta vislumbrar o autor de tal aflição. Hesita entre um encolher de ombros e uma acção. Não demora muito tempo a decidir-se. O encolher de ombros só é válido na sua vida para o que não interessa. Pensando bem seria Incapaz de dormir sem tentar ajudar quem precisa. Ou então, morreria de curiosidade e imaginaria o maior número de cenários. Passaria semanas ou mesmo meses a pensar no mesmo. Agir tinha mesmo agir.

 

Entenda-se que este momento é literário. Necessário compor-se a história ou então rapidamente se acabariam as letras. Se estivessem a matar alguém, já teria dado tempo para se enterrar o corpo. Mas tenhamos calma porque há que defender primeiro a nossa menina, criar “suspense” e percebermos o que se está a passar.

 

Lembra-se do calhamaço de Sociologia que traz dentro da mala e associa-o a arma de arremesso. Procura rapidamente o estojo de unhas e mune-se de uma lima. Descalça as “andas” vermelhas que trás nos pés e avança ciente de que o perigo a espreita. Os gritos espaçam-se no tempo enquanto a ansiedade aumenta, Arrepende-se de não ter ficado em casa dele. Sorri ao lembrar-se que em vez de uma noite de acção podia ter uma noite de amor. Abana a cabeça e começa-se a achar meio “taradita”. O perigo espreita-a. Concentra-se no que realmente interessa. Avança encostada à parede. Lembra-se que vai ficar com a roupa suja e ainda olha com ar enjoado para as meias. Chega-se à esquina e quase não respira. Sente arrepios. Não sabe se do frio se do medo que os gritos lhe provocam. Agarra-se à lima que trás na mão e é quando sente uma pancada na cabeça. Sente o cheiro a perfume intenso e desmaia ..

 

 

História de ficção escrita por mim para a Fábrica de Histórias

publicado por Marta às 14:41
Sexta-feira , 22 de Outubro DE 2010

Sem Tempo

E quando não tenho tempo para escrever recordo o que um dia escrevi e que me marcou pore sta ou aquela razão

 

Pediste-me para Pintar Pediste-me para pintar. Pediste-me para pintar um quadro para me conheceres melhor. Mas não sou pintor. Gostava de o fazer mas não consigo. Eu tentei garanto-te que tentei.

 

Muni-me de telas, tintas e pincéis mas não consegui porque não sou pintor. Mas não quero deixar de realizar esse teu pedido. Por isso pinto-te um quadro de palavras não que seja escritor mas é só assim que o consigo fazer.

 

Imagina esta folha de papel como se fosse uma tela. O pincel são as letras, as palavras e as frases que se transformam numa mensagem. As cores imaginas no que eu te descrever e no final tens o quadro aquele que me pediste para pintar. Não sei se vais gostar, não sei se vais compreender, não sei sequer se me vais conhecer. Mas tenta entender que pinto-te a minha vida da única forma que consigo pintar.

 

Nasci num mundo colorido rodeado de amor, compreensão e carinho. Senti abraços vermelhos, sorrisos dourados e beijos cor de anil . Vi mares de azul claro, senti o amarelo do sol na minha pele, corri por campos verdes e brinquei em parques de todas as cores. Sonhei ser Bombeiro queria-me fardar entrar naqueles carros vermelhos e combater as chamas laranjas dos fogos. Fui crescendo sempre no meu mundo colorido mas as minhas cores foram-se esbatendo.

 

Não sabia quem era, não sabia o que queria ser, só sabia que queria crescer. Vesti-me muitas vezes de preto porque era assim que me sentia. Já não queria abraços de cor nenhuma, já não queria que me beijassem, já não queria que me sorrissem. O meu mundo era negro porque eu não sabia quem era. Achava só que era crescido. As cores voltaram quando me encontrei depois de me ter perdido. Tinha de me encontrar porque o meu mundo sempre foi colorido. Estudei em livros verdes, amarelos, azuis com imagens de todas as cores mas agora sei que o mais importante estava no preto e branco das palavras que me ensinaram. Vesti-me de verde esperança e rodei-me de pessoas de todos os tons. Amei com o vermelho da paixão, tive sonhos cor de rosa, amizades coloridas e até pensei que ia mudar o mundo. Senti o azul do céu nos quatros cantos do mundo, vi o castanho da terra, maravilhei-me com o verde da floresta amazónia, impressionei-me com o branco dos pólos, percorri quilómetros a observar flores vermelhas, verdes, rosas, roxas e azuis.

 

É verdade vi e senti todas estas cores sem saber que as sentia. Hoje penso com cor porque não consigo pensar de outra maneira. Sonho com um mundo como se fosse um vitral das igrejas que visitei. Sonho com um mundo coberto de branco de paz onde as pessoas se entendam em amizades sinceras e douradas.

 

Sonho com um mundo onde o verde das fardas deixe de ser necessário. Sonho com um mundo onde o vermelho da paixão prevaleça. Sonho com um mundo onde todos possamos plantar flores de todas as cores no coração uns dos outros. Sonho com um mundo onde não existam pensamentos cinzentos. Sonho com um mundo onde as vidas negras acabem. Sonho com um mundo onde as pessoas vivam com cor mas não se descriminem pela cor. Sonho com um mundo onde a cor do dinheiro deixe de ser mais importante do que a cor da amizade.

 

Agora fecha os olhos. Deixa que te leia tudo o que te escrevi. Ouve-me com calma e coloca na tela da tua imaginação as minhas palavras, pinta-as com as cores das tuas vivências, retoca-as com o que sentes, escolhe os tons que te fiz sentir, cobre-as com os teus sonhos e acrescenta-lhe os teus desejos. Consegues imaginar tudo o que senti e tudo o que vivi? Esse é o meu quadro aquele que não soube pintar mas que escrevi para ti.

publicado por Marta às 17:13
Sexta-feira , 24 de Setembro DE 2010

...

A Fábrica desafiou para que continuasse uma das histórias da semana passada e eu peguei nesta (cumplicedotempo) e aqui está o resultado :

 

… Custou-me adormecer nessa noite. Sabem quando nos viramos e reviramos na cama sem que o sono venha? Sabem quando nos levantamos e vagueamos pela casa como se o procurássemos? Buscamos o sono enquanto caminhamos sem destino quando o caminho está afinal no nosso pensamento. E, o caminho era ele. Por muito que caminhasse e o chamasse o sono não vinha porque se escondia no rosto dele, no olhar dele, e nos minutos em que os nossos olhos se tinham cruzado nesse dia.

 

Por muito que tentasse aquele rosto moreno de olhos verdes acompanhava-me para todo o lado. “Não gosto de homens de olhos verdes” murmurava eu de mim para mim como se a convencer-me que nunca o mais voltaria a ver. O corpo musculado contrariava-me os olhos verdes. A postura segura e confiante contrariava-me todo e qualquer sentimento de recuo que pudesse sentir. Revi o sorriso tímido. Suspirei e pensei que me vencera sem ter sequer lutado por mim. Suspirei e senti-me, por momentos, ridícula de suspirar por alguém de quem não sabia nada nem sequer o nome. Depois lembrei-me e, desculpem-me o lugar comum, de um dia ter lido em qualquer lado que ridículos são os que nunca sentiram o amor. Corei com os meus próprios pensamentos.

 

 Desenganem-se os que estão a pensar num encadeamento erótico porque os meus pensamentos foram muito mais além. Aqueles minutos naquela sala fizeram com que, a partir daí, sonhasse com ele numa vida que também era minha. A nossa vida. Sonhei com ele, com os filhos que tivemos e com a casa onde vivíamos. Escrevi diálogos onde ele me fazia sentir uma princesa e onde eu lhe contava o quanto o amava. Escrevi um argumento onde a felicidade imperava e onde o verbo amar era uma constante.

 

 O rosto dele tornava-se cada vez mais familiar porque o revia dia a dia numa vida que sonhava e que se tornava cada vez mais perfeita. Demos risadas quando lhe contei tudo isso, ensaiei as palavras do reencontro para que nada falhasse e repeti as vezes necessárias para que nada falhasse e para que tudo fosse perfeito. Como perfeita era a nossa vida aquela que eu sonhava ter. Perdi a conta ás vezes que voltei aquela sala. Perdi a conta às vezes em que o procurei nos rostos desconhecidos que se cruzavam comigo na rua. Perdi a conta às vezes que o via sem o ver e o sentia sem sentir.

 

 Acreditam que consigo sentir-lhe o cheiro sempre que fecho os olhos e penso nele? Incrível a forma como a nossa mente se organiza, incrível como eu nos organizei. Perdi a conta ás vezes que o procurei mas nunca perdi a esperança de um dia o encontrar. Sei que um dia o vou encontrar, sei que um dia vamos ser felizes. Mais que saber sinto que um dia vamos ser um do outro porque já o sinto meu e já me sinto sua. Sei e sinto que também ele me procura. Acredito que estamos apenas desencontrados no tempo e no momento …

publicado por Marta às 16:38
Domingo , 12 de Setembro DE 2010

Nevava em Paris

Texto de ficção escrito por Marta Leal para a Fábrica de Histórias

 

 

 

O som da água a correr misturava-se com o som da música ambiente. Os sentidos iam despertando um a um como se alguém lhes sussurrasse para o fazerem. Sentiu o cheiro a Outono misturado com o cheiro de corpos que passaram a noite a amar-se. Sorriu, virou-se e abraçou-se á almofada onde o cheiro a ele se tinha misturado com o cheiro dela. Gostava de sentir o seu corpo nu nos lençóis de seda.

 

Cantarolava baixinho enquanto era transportada para outros momentos e outros tempos. Outros tempos tão distantes em anos mas tão perto em sentimentos. Era a música deles e sempre seria. António jurara-lhe amor eterno numa eternidade que sabia ser efémera. Madalena fizera que acreditara ou talvez tivesse acreditado mesmo. O orgulho ou a desilusão nunca lhe tinha permitido reconhecer o contrário. Nem perante os outros nem mesmo no recanto dos seus pensamentos.

 

Estávamos no Outono do ano de 1998 e subia a rua do Carmo apressada. As botas castanhas dificultavam-lhe a vida e censurava-se por as ter calçado. Outros tempos outros modas e uma vontade de nunca deixar de as seguir. Os olhos deles cruzaram-se no momento em que chocaram um no outro. As desculpas transformaram-se em risos. Palavras veladas, gestos atrapalhados e despedidas contrariadas. Olhares de relance enquanto caminhavam em sentidos opostos.

 

- Lindo. Sabes? Alto cabelo grisalho uns olhos castanhos fantásticos e um cheiro que não consegui identificar.

 

Madalena descrevia António de forma entusiasta sem saber o que o destino lhe reservava.

 

Cruzaram-se mais uma vez, no mesmo sítio, à mesma hora noutro qualquer dia onde se procuravam sem admitir que o faziam. Os cabelos castanhos dela escondiam-se num gorro castanho, os olhos verdes brilharam mais do que o normal quando o viram, o coração disparara e as mãos tremiam-lhe. As iluminações de Natal já estavam colocadas, as montras apelavam ás compras e o cheiro a Lisboa reinava mais que nunca.

 

Paris, Londres, Amesterdão, Madrid, Praga e Barcelona foram cenários onde se aprenderam a amar e onde consolidaram o que era evidente. Eram um do outro com vontade de nunca o deixarem de ser.

 

Ele numa timidez atrevida ela num atrevimento tímido. Cantava-lhe ao ouvido sempre que podia, sussurrava-lhe o que sentia e abraçava-a como não existisse o amanhã.

 

- Amo-te para sempre mesmo que não dure para sempre – murmurou Madalena

 

- Que bela maneira de se acordar – disse-lhe Manuel - enquanto a beijava suavemente.

 

Madalena abriu os olhos, confusa. Tinha viajado no tempo e com o tempo. Rebolou na cama grande e tapou-se com a colcha castanha. O Quarto do Hotel era simples mas confortável. Viu dirigir-se ao espelho de parede, que estava em frente à cama, enquanto passava as mãos pelo cabelo .O cabelo louro dele começava a cair, o porte atlético a desaparecer mas os olhos falavam sem que a boca se mexesse. Sorriu-lhe. Amava-o não da mesma forma que tinha amado António mas amava-o. Se é certo que nunca se ama a mesma pessoa duas vezes mais certo é que nunca se ama da mesma forma duas pessoas diferentes.

 

- Eu acordo sempre bem disposta.

- Desde que não te contrarie minha querida.

 

Estamos, novamente, em Paris só que desta vez é Inverno. Viajavam sempre que podiam, encontravam-se nos gostos e realizavam-se nas vontades. Madalena gostava de confessar para si mesma que, na vida, viajava entre a calma de Manuel e a sua agitação constante que a fazia parecer inconstante.

 

- Esta musica é de quem?

- Elton Jonh “Something about the way you look tonight”

 

A última vez que a tinha ouvido fora António que a cantara para ela em plenos Champes Élysées numa noite onde um ano se despedia e outro se apresentava.. Ali estava ela escondida no seu sobretudo azul-escuro, que ainda guardava, o frio queimava-lhe o rosto e ele cantava-lhe. Cantava-lhe sem parar. Nos que passavam haviam olhares de espanto, sorrisos embevecidos e aplausos espontâneos. Nevava em Paris nessa noite.

 

- Amo-te para sempre mesmo que não dure para sempre – era sempre assim que se despedia e era sempre o que dizia na chegada.

 

Entre chegadas e partidas perderam-se algures numa qualquer estação da indiferença, do esquecimento ou mesmo da espontaneidade perdida. Entre canções e abraços esmoreceram-se vontades e forçaram-se presenças. Um dia embora se continuassem a amar não durou para sempre.

 

Rotinas fora da rotina, hábitos sem o serem e, imprevistos diários que a faziam sentir-se viva. Durante tempos sentiu falta dele ou talvez do que ele a fazia sentir.

 

De inicio estranhou a calma de Manuel especialmente na forma de a amar. Faltava-lhe a espontaneidade, a imprevisibilidade e a infantilidade a que se habituara. Deixou de comparar e permitiu-se voltar a amar.

 

- Há amores que nunca tem de ser vividos – concluiu Madalena

- Sim?

- Estava a pensar que existem amores que não tem de ser vividos – respondeu Madalena

- E o nosso? – perguntou Manuel com a calma que o caracterizava.

- Digamos que o nosso é um amor para a vida e com vida

 

Olhei e sorri. Aqueles dois eram um para o outro sem deixarem de ser eles próprios. Passaram 6 anos desde a primeira vez que se tinham conhecido. Sem previsões ou planeamentos, sem projectos ou caminhos traçados viveram como nunca tinham vivido.

 

Encontrei-me com eles já na rua. O hall do hotel estava demasiado povoado para o meu gosto. Neva, novamente, em Paris. Gosto do cheiro a Paris. Gosto do cheiro a cidade romântica. Gosto de os ver assim de mão dada a caminharem entusiasmados e com um ar de felicidade daqueles que se sentem.

 

- Demorámos muito?

- Não, eu é que sou impaciente.

 

Madalena passara pelo meu quarto para me contar que tinha acordado a pensar em António.

- Saudades?

- Mais certezas

- Certezas?

- Apenas de que existem amores que não tem mesmo de ser vividos.

- Talvez noutros tempos?

- Eu apostava mais noutras realidades.

 

publicado por Marta às 00:05
Segunda-feira , 15 de Março DE 2010

Sentia-me Cansado ...

Sentia-me cansado. Cansado da vida que levava, dos problemas dos outros que se confundiam cada vez mais com os meus. Da minha vida que deixou de ser minha ou a dos outros que se misturava constantemente com a que um dia achei que me pertencia. Sentia-me cansado e esgotado. Existiam momentos em que simplesmente me apetecia desistir, mudar de vida seguir em frente por outro caminho. Não deixa de ser irónico, eu que passei a vida a orientar os outros sentir-me desorientado num esforço de orientação constante.

 

Depois, lembrava-me de todos os meus doentes, aqueles que acompanhava há anos, os que desistiam e voltavam, os que desistiam e nunca mais voltava a ver e os que ficavam apenas porque não tinham mais ninguém com quem falar. Por vezes procuravam em mim aquele amigo que nunca tinham tido. Sentia que era injusto que alguns pagassem por companhia, ou apenas para terem alguém com quem falar. Sentia que era injusto mas nunca fiz nada para o evitar. A solidão faz-nos fazer coisas incríveis, a solidão nunca é nem nunca foi boa conselheira. Por muito que analise a situação nunca vou saber quem se sentia mais só se eles se eu.

 

Não preciso de consultar ficheiros para me lembrar de todos eles. Lembro-me de cada um e de todas as patologias de que sofriam. Recordo os que se curaram, os que desistiram de viver e os que simplesmente achavam que viviam. Sei que quebrei as regras vezes sem conta. Perdi o número de vezes que deixei que a porta da emotividade se abrisse, que o distanciamento se encurtasse e que as emoções deles se tornassem nas minhas emoções.

 

Mudei efectivamente de rumo no dia em que ele entrou pelo meu consultório a pedir ajuda. Mudei de rumo, mudei de atitude mas mudei principalmente na forma de encarar a vida. A Maria Madalena tinha-me pedido que o atendesse, que lhe parecera aflito, que se eu ficasse mais uma hora valeria a pena. Estranhei o pedido e a interferência quando em 10 anos a trabalharmos juntos nunca ela tinha feito tal coisa. Não me lembro de ter conhecido mulher mais alegre do que ela, sempre sorridente, roupas justas, cabelo sempre de cores chamativas, maquilhagem pesada mas contudo sem me incomodar. Agora que penso nisso não deixo de pensar que era uma mulher bem interessante a Maria Madalena.

 

Ele, entrou-me no consultório com ar perdido mas postura segura. O seu cabelo ruivo em desalinho, os olhos azuis pareciam ter chorado durante dias seguidos, a combinação da roupa era despropositada e até cómica se não estivéssemos onde estávamos. Mal entrou perguntou-me pelo sofá. Respondi-lhe que não era meu hábito falar para os pacientes deitados. Riu-se, animou-se e começou a falar de uma quantidade de filmes onde os doentes se deitavam sempre que iam ao psicólogo. Perdemo-nos no tempo e nas risadas misturadas com as lágrimas dele e as minhas que teimavam em saltar. História de vida triste a daquele homem que contrastava com a forma dele a viver. Os olhos brilhavam com o que o entusiasmava e entristeciam-se com o que o magoara. Falava ininterruptamente, contava os factos analisava as questões que é como quem diz fazia as perguntas e dava as respostas. Eu deixei-me envolver de tal modo que foi ele que conduziu a consulta sem que me importasse.

 

Passaram 3 horas num ápice, recordo a gargalhada que deu quando olhou para o relógio e a forma como proferiu o “o diabo não basta a minha desgraça agora também você me vai levar á falência”. Fez-me rir. Não sorrir como era um hábito, mas rir com vontade. Lembro-me que dei uma gargalhada como há muito tempo não dava. Disse-lhe que não lhe levava nada que tinha sido um prazer conhece-lo que encarasse este tempo como uma pesquisa para mim. Sorriu e foi então que proferiu as palavras que fizeram a diferença.

 

“Sabe doutor eu vim cá porque todos dizem que é o melhor. Que me ia fazer bem falar consigo e tal e coiso. Ainda pensei duas vezes porque isto há uns anos era só para malucos e sabe como é ainda somos uma cambada de preconceituosos. Mas também se não desabafasse ficava maluco portanto já não tinha nada a perder. Agora que o conheci acho que é um homem triste, um homem só e um homem que ri pouco. Gostei deste bocadinho porque aliviei tudo o que ia na minha alma. Bem, e agora vou-me embora porque amanhã é outro dia e sabe como é eu posso abanar mas só vou cair quando morrer. Quanto si homem e permita-me que lho diga porque o senhor é que é doutor mas ria mais homem, deixe de ser tão sério e divirta-se porque a vida só vale a pena se a vivermos”.

 

Depois de ele se ter despedido deixei-me ficar ali não sei por quanto tempo. Pensei em tudo o que tinha planeado para a minha vida, no que fui adiando sucessivamente. Pensei nos amigos que se tinham afastado pela minha falta de tempo, pensei no que perdi ao ter deixado de viver para ter.

 

Hoje, encontro-me em Africa a dar apoio a refugiados de guerra. Hoje, encontro-me onde sinto que precisam de mim. Hoje, surpreendo-me com a esperança dos que aos olhos dos outros nada tem que esperar, surpreendo-me com o sorriso nos olhos daqueles que era suposto só chorarem, surpreendo-me nos que respeitam sem nunca terem sido respeitados. Hoje continuo a trabalhar até a exaustão, a ajudar quem precisa de ser ajudado, a encaminhar quem precisa de ser encaminhado. Só que hoje, graças a ele, eu trabalho com sentido, rio com vontade, choro sem vergonha e vivo orientado numa felicidade constante. Hoje penso nos livros que li, nos doutoramentos que tirei, nos mestrados que fiz. Hoje penso que todo um conhecimento científico foi completado apenas com o conhecimento comum, com a prática de um homem, com a análise empírica de quem apenas viveu e aprendeu.

 

 

Texto de ficção escrito por mim para a Fábrica de Histórias

 

publicado por Marta às 12:37

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