Com Engenho

A Fábrica de Histórias esta semana começou a história e as “ordens” são para a deixar em aberto:

 

Texto de Ficção escrito por Marta leal

 

"Reparei nela assim que entrou na sala de espera. Foi o som que primeiro me chamou a atenção, o estalar ritmado e seguro de saltos altos na cerâmica que cobria o chão. Ainda hoje, quando penso nisso, não consigo perceber como a ouvi chegar."

 

 

Fascinante a forma como fez que todas as cabeças se viraram enquanto caminhava. De repente, os olhares passaram a ter um denominador comum a inveja das mulheres versus o desejo dos homens. Era sempre assim. Habituei-me ás suas entradas triunfantes, aos seus piscares de olhos lançados de forma subversiva e aos seus olhares de desafio perante as que ousavam olhá-la fixamente. Nessa altura pensava que ainda estaria para nascer quem a faria desviar o olhar. Mudou tanta coisa desde esse dia. Ou, para ser mais exacto ela mudou tanto desde esse dia.

 

Não era uma mulher bonita, não era uma mulher vistosa era apenas uma mulher segura. Desenganem-se os que neste momento pensam que seria uma mulher fácil. De todo. Como ela orgulhosamente dizia “durmo com quem quero, quando quero e só porque não quero nada em troca”. Hoje decidira-se pelo vestido vermelho, justo e com decote generoso. Equilibrava-se nos saltos como se andasse descalça e o cabelo solto faziam com que os caracóis acompanhassem o movimento do andar. Não parecia ter a idade que tinha aliás era daquelas mulheres sem idade. Voluptuosa sem o ser, sedutora numa sensualidade estudada e provocadora natural.

 

Desenganem-se os que pensam que nos envolvemos. Nunca. No negócio da vida a regra é não nos envolvermos com os amigos no nosso negócio a regra era não nos envolvermos com o sócio. Duplamente impedidos de algo em que nunca pensámos sequer.

 

Noites de elaboração de planos alternavam-se com noites de desabafos sentidos por muito que não fizessem sentido. Palavras ditas com um olhar, frases feitas com um gesto. Cumplicidades estudadas nas experiências partilhadas. Risos sem planeamento contrastavam com seriedade de objectivos. Noitadas de diversão alternavam com noitadas de preparação.

 

Dizia-me frequentemente que podíamos ter sido criados na mesma casa ou nascer dos mesmos pais. Eu, na minha simplicidade contida, dizia-lhe que éramos farinha do mesmo saco. Apoiámo-nos no primeiro segundo e fomos amigos de e para a vida. Bonnie and Clyde numa versão portuguesa ou se preferirem uma espécie de Sherlock Holmes e Dr. Watson.

 

Mas já me estou a dispersar. Acontece-me sempre que falo dela e deste nosso passado em comum. Dizia eu que me continuava a impressionar a forma como ela chamava a atenção sempre que entrava numa sala. Tínhamos tudo combinado ela e eu, era sempre assim que operávamos. Eu, chegava sempre primeiro e deixava a sala compor-se, mandava-lhe mensagem e ela depois aparecia e sentava-se onde tínhamos planeado. Normalmente apenas suficientemente perto do nosso objectivo.

 

Nesse dia o olhar estava diferente. Eu, melhor que ninguém, devia não só ter reparado como ter suspendido tudo até ter percebido o que se passava. O meu instinto avisou-me mas eu estava demasiado concentrado para o ouvir. O tesouro era demasiado precioso para ser ignorado. Tínhamos discutido, pela primeira vez, uma semana antes. Eu interpretei a falta de paciência e o afastamento dela com o cansaço quando devia ter reparado mais no olhar. O olhar diz tudo e o olhar dela tinha mudado embora de forma ainda subtil, o que é um facto é que o olhar tinha mudado. O medo tinha-se instalado e na nossa profissão não há lugar nem para medos nem para hesitações.

 

Olhei-a quando se sentou e senti um arrepio, Vi medo num rosto onde até hoje só tinha visto certezas. Vi umas mãos que de repente deixaram de saber onde estar ou o que fazer e vi uma postura que até então me era desconhecida. Vi-a olhar sempre na mesma direcção quando devia olhar na direcção oposta. Mudei de lugar e sentei-me onde a pudesse observar melhor. De repente, senti o tapete a fugir-me de debaixo dos pés, a cabeça andou à roda e tenho de confessar que por momentos entrei em pânico.

 

Ela procurava-me com o olhar mas de onde estava não me conseguia ver. Mais tarde confessou-me que esteve tentada a sair a correr dali, mais tarde contou-me que já o tinha visto duas vezes perto de casa e que, por várias ocasiões, sentiu que era seguida. Confessou-me que não me tinha contado porque tínhamos combinado que era a ultima vez que fazíamos isto, que era o ultimo golpe e depois iríamos parar. Como se isso fosse possível. Dizíamos sempre isso mas a ambição era sempre maior que as promessas vãs que insistíamos fazer um ao outro.

 

Evidente que não só o fazíamos por dinheiro mas por puro prazer. Ainda hoje, daqui de onde vos escrevo, sinto falta dos dias em que planeávamos o golpe, da adrenalina crescente enquanto o plano se desenrolava e da sensação a vitória. Vitória nossa que significava sempre derrota de alguém. Lei da compensação meus caros leitores enquanto uns perdem outros ganham.

 

Hoje sei que devíamos ter parado. Falhámos no que nunca poderíamos ter falhado. Logo nós, que sempre partilhámos tudo esquecemo-nos de partilhar sensações que não entendíamos. Em vez de partilharmos falsas seguranças devíamos ter partilhado inseguranças verdadeiras.    

 

De repente, passou-se tudo muito depressa. Eles apareceram de todo o lado. Ela não teve qualquer hipótese de fuga e eu, contrariamente ao que tínhamos combinado, hesitei. Sabia que as regras eram sair dali o mais depressa possível, aproveitar a confusão e os chiliques da praxe e misturar-me com os outros. Misturar-me na inocência de outros para passar despercebido.

 

 

publicado por Marta às 11:58