Sentia-me Cansado ...

Sentia-me cansado. Cansado da vida que levava, dos problemas dos outros que se confundiam cada vez mais com os meus. Da minha vida que deixou de ser minha ou a dos outros que se misturava constantemente com a que um dia achei que me pertencia. Sentia-me cansado e esgotado. Existiam momentos em que simplesmente me apetecia desistir, mudar de vida seguir em frente por outro caminho. Não deixa de ser irónico, eu que passei a vida a orientar os outros sentir-me desorientado num esforço de orientação constante.

 

Depois, lembrava-me de todos os meus doentes, aqueles que acompanhava há anos, os que desistiam e voltavam, os que desistiam e nunca mais voltava a ver e os que ficavam apenas porque não tinham mais ninguém com quem falar. Por vezes procuravam em mim aquele amigo que nunca tinham tido. Sentia que era injusto que alguns pagassem por companhia, ou apenas para terem alguém com quem falar. Sentia que era injusto mas nunca fiz nada para o evitar. A solidão faz-nos fazer coisas incríveis, a solidão nunca é nem nunca foi boa conselheira. Por muito que analise a situação nunca vou saber quem se sentia mais só se eles se eu.

 

Não preciso de consultar ficheiros para me lembrar de todos eles. Lembro-me de cada um e de todas as patologias de que sofriam. Recordo os que se curaram, os que desistiram de viver e os que simplesmente achavam que viviam. Sei que quebrei as regras vezes sem conta. Perdi o número de vezes que deixei que a porta da emotividade se abrisse, que o distanciamento se encurtasse e que as emoções deles se tornassem nas minhas emoções.

 

Mudei efectivamente de rumo no dia em que ele entrou pelo meu consultório a pedir ajuda. Mudei de rumo, mudei de atitude mas mudei principalmente na forma de encarar a vida. A Maria Madalena tinha-me pedido que o atendesse, que lhe parecera aflito, que se eu ficasse mais uma hora valeria a pena. Estranhei o pedido e a interferência quando em 10 anos a trabalharmos juntos nunca ela tinha feito tal coisa. Não me lembro de ter conhecido mulher mais alegre do que ela, sempre sorridente, roupas justas, cabelo sempre de cores chamativas, maquilhagem pesada mas contudo sem me incomodar. Agora que penso nisso não deixo de pensar que era uma mulher bem interessante a Maria Madalena.

 

Ele, entrou-me no consultório com ar perdido mas postura segura. O seu cabelo ruivo em desalinho, os olhos azuis pareciam ter chorado durante dias seguidos, a combinação da roupa era despropositada e até cómica se não estivéssemos onde estávamos. Mal entrou perguntou-me pelo sofá. Respondi-lhe que não era meu hábito falar para os pacientes deitados. Riu-se, animou-se e começou a falar de uma quantidade de filmes onde os doentes se deitavam sempre que iam ao psicólogo. Perdemo-nos no tempo e nas risadas misturadas com as lágrimas dele e as minhas que teimavam em saltar. História de vida triste a daquele homem que contrastava com a forma dele a viver. Os olhos brilhavam com o que o entusiasmava e entristeciam-se com o que o magoara. Falava ininterruptamente, contava os factos analisava as questões que é como quem diz fazia as perguntas e dava as respostas. Eu deixei-me envolver de tal modo que foi ele que conduziu a consulta sem que me importasse.

 

Passaram 3 horas num ápice, recordo a gargalhada que deu quando olhou para o relógio e a forma como proferiu o “o diabo não basta a minha desgraça agora também você me vai levar á falência”. Fez-me rir. Não sorrir como era um hábito, mas rir com vontade. Lembro-me que dei uma gargalhada como há muito tempo não dava. Disse-lhe que não lhe levava nada que tinha sido um prazer conhece-lo que encarasse este tempo como uma pesquisa para mim. Sorriu e foi então que proferiu as palavras que fizeram a diferença.

 

“Sabe doutor eu vim cá porque todos dizem que é o melhor. Que me ia fazer bem falar consigo e tal e coiso. Ainda pensei duas vezes porque isto há uns anos era só para malucos e sabe como é ainda somos uma cambada de preconceituosos. Mas também se não desabafasse ficava maluco portanto já não tinha nada a perder. Agora que o conheci acho que é um homem triste, um homem só e um homem que ri pouco. Gostei deste bocadinho porque aliviei tudo o que ia na minha alma. Bem, e agora vou-me embora porque amanhã é outro dia e sabe como é eu posso abanar mas só vou cair quando morrer. Quanto si homem e permita-me que lho diga porque o senhor é que é doutor mas ria mais homem, deixe de ser tão sério e divirta-se porque a vida só vale a pena se a vivermos”.

 

Depois de ele se ter despedido deixei-me ficar ali não sei por quanto tempo. Pensei em tudo o que tinha planeado para a minha vida, no que fui adiando sucessivamente. Pensei nos amigos que se tinham afastado pela minha falta de tempo, pensei no que perdi ao ter deixado de viver para ter.

 

Hoje, encontro-me em Africa a dar apoio a refugiados de guerra. Hoje, encontro-me onde sinto que precisam de mim. Hoje, surpreendo-me com a esperança dos que aos olhos dos outros nada tem que esperar, surpreendo-me com o sorriso nos olhos daqueles que era suposto só chorarem, surpreendo-me nos que respeitam sem nunca terem sido respeitados. Hoje continuo a trabalhar até a exaustão, a ajudar quem precisa de ser ajudado, a encaminhar quem precisa de ser encaminhado. Só que hoje, graças a ele, eu trabalho com sentido, rio com vontade, choro sem vergonha e vivo orientado numa felicidade constante. Hoje penso nos livros que li, nos doutoramentos que tirei, nos mestrados que fiz. Hoje penso que todo um conhecimento científico foi completado apenas com o conhecimento comum, com a prática de um homem, com a análise empírica de quem apenas viveu e aprendeu.

 

 

Texto de ficção escrito por mim para a Fábrica de Histórias

 

publicado por Marta às 12:37