Nevava em Paris

Texto de ficção escrito por Marta Leal para a Fábrica de Histórias

 

 

 

O som da água a correr misturava-se com o som da música ambiente. Os sentidos iam despertando um a um como se alguém lhes sussurrasse para o fazerem. Sentiu o cheiro a Outono misturado com o cheiro de corpos que passaram a noite a amar-se. Sorriu, virou-se e abraçou-se á almofada onde o cheiro a ele se tinha misturado com o cheiro dela. Gostava de sentir o seu corpo nu nos lençóis de seda.

 

Cantarolava baixinho enquanto era transportada para outros momentos e outros tempos. Outros tempos tão distantes em anos mas tão perto em sentimentos. Era a música deles e sempre seria. António jurara-lhe amor eterno numa eternidade que sabia ser efémera. Madalena fizera que acreditara ou talvez tivesse acreditado mesmo. O orgulho ou a desilusão nunca lhe tinha permitido reconhecer o contrário. Nem perante os outros nem mesmo no recanto dos seus pensamentos.

 

Estávamos no Outono do ano de 1998 e subia a rua do Carmo apressada. As botas castanhas dificultavam-lhe a vida e censurava-se por as ter calçado. Outros tempos outros modas e uma vontade de nunca deixar de as seguir. Os olhos deles cruzaram-se no momento em que chocaram um no outro. As desculpas transformaram-se em risos. Palavras veladas, gestos atrapalhados e despedidas contrariadas. Olhares de relance enquanto caminhavam em sentidos opostos.

 

- Lindo. Sabes? Alto cabelo grisalho uns olhos castanhos fantásticos e um cheiro que não consegui identificar.

 

Madalena descrevia António de forma entusiasta sem saber o que o destino lhe reservava.

 

Cruzaram-se mais uma vez, no mesmo sítio, à mesma hora noutro qualquer dia onde se procuravam sem admitir que o faziam. Os cabelos castanhos dela escondiam-se num gorro castanho, os olhos verdes brilharam mais do que o normal quando o viram, o coração disparara e as mãos tremiam-lhe. As iluminações de Natal já estavam colocadas, as montras apelavam ás compras e o cheiro a Lisboa reinava mais que nunca.

 

Paris, Londres, Amesterdão, Madrid, Praga e Barcelona foram cenários onde se aprenderam a amar e onde consolidaram o que era evidente. Eram um do outro com vontade de nunca o deixarem de ser.

 

Ele numa timidez atrevida ela num atrevimento tímido. Cantava-lhe ao ouvido sempre que podia, sussurrava-lhe o que sentia e abraçava-a como não existisse o amanhã.

 

- Amo-te para sempre mesmo que não dure para sempre – murmurou Madalena

 

- Que bela maneira de se acordar – disse-lhe Manuel - enquanto a beijava suavemente.

 

Madalena abriu os olhos, confusa. Tinha viajado no tempo e com o tempo. Rebolou na cama grande e tapou-se com a colcha castanha. O Quarto do Hotel era simples mas confortável. Viu dirigir-se ao espelho de parede, que estava em frente à cama, enquanto passava as mãos pelo cabelo .O cabelo louro dele começava a cair, o porte atlético a desaparecer mas os olhos falavam sem que a boca se mexesse. Sorriu-lhe. Amava-o não da mesma forma que tinha amado António mas amava-o. Se é certo que nunca se ama a mesma pessoa duas vezes mais certo é que nunca se ama da mesma forma duas pessoas diferentes.

 

- Eu acordo sempre bem disposta.

- Desde que não te contrarie minha querida.

 

Estamos, novamente, em Paris só que desta vez é Inverno. Viajavam sempre que podiam, encontravam-se nos gostos e realizavam-se nas vontades. Madalena gostava de confessar para si mesma que, na vida, viajava entre a calma de Manuel e a sua agitação constante que a fazia parecer inconstante.

 

- Esta musica é de quem?

- Elton Jonh “Something about the way you look tonight”

 

A última vez que a tinha ouvido fora António que a cantara para ela em plenos Champes Élysées numa noite onde um ano se despedia e outro se apresentava.. Ali estava ela escondida no seu sobretudo azul-escuro, que ainda guardava, o frio queimava-lhe o rosto e ele cantava-lhe. Cantava-lhe sem parar. Nos que passavam haviam olhares de espanto, sorrisos embevecidos e aplausos espontâneos. Nevava em Paris nessa noite.

 

- Amo-te para sempre mesmo que não dure para sempre – era sempre assim que se despedia e era sempre o que dizia na chegada.

 

Entre chegadas e partidas perderam-se algures numa qualquer estação da indiferença, do esquecimento ou mesmo da espontaneidade perdida. Entre canções e abraços esmoreceram-se vontades e forçaram-se presenças. Um dia embora se continuassem a amar não durou para sempre.

 

Rotinas fora da rotina, hábitos sem o serem e, imprevistos diários que a faziam sentir-se viva. Durante tempos sentiu falta dele ou talvez do que ele a fazia sentir.

 

De inicio estranhou a calma de Manuel especialmente na forma de a amar. Faltava-lhe a espontaneidade, a imprevisibilidade e a infantilidade a que se habituara. Deixou de comparar e permitiu-se voltar a amar.

 

- Há amores que nunca tem de ser vividos – concluiu Madalena

- Sim?

- Estava a pensar que existem amores que não tem de ser vividos – respondeu Madalena

- E o nosso? – perguntou Manuel com a calma que o caracterizava.

- Digamos que o nosso é um amor para a vida e com vida

 

Olhei e sorri. Aqueles dois eram um para o outro sem deixarem de ser eles próprios. Passaram 6 anos desde a primeira vez que se tinham conhecido. Sem previsões ou planeamentos, sem projectos ou caminhos traçados viveram como nunca tinham vivido.

 

Encontrei-me com eles já na rua. O hall do hotel estava demasiado povoado para o meu gosto. Neva, novamente, em Paris. Gosto do cheiro a Paris. Gosto do cheiro a cidade romântica. Gosto de os ver assim de mão dada a caminharem entusiasmados e com um ar de felicidade daqueles que se sentem.

 

- Demorámos muito?

- Não, eu é que sou impaciente.

 

Madalena passara pelo meu quarto para me contar que tinha acordado a pensar em António.

- Saudades?

- Mais certezas

- Certezas?

- Apenas de que existem amores que não tem mesmo de ser vividos.

- Talvez noutros tempos?

- Eu apostava mais noutras realidades.

 

publicado por Marta às 00:05