Prometo-me
Surpreende-me o que juntamos num final de vida. Mas mais surpreendente é a forma como os outros se desfazem daquilo que um dia construímos, investimos e nos esforçámos para ter. Desfazem-se casas. Vendem-se recordações. Dos outros, porque para nós pouco ou nada significam. Distraímo-nos no que achamos graça e questionamos o porquê das coisas. Folheamos livros esquecidos, conhecidos e outros dos quais nunca ouvimos falar. Perco-me nos postais e nas notícias escritas numa letra invejável onde a tinta já sumida nos envolve em mistério.
Canecas de outros pequenos-almoços. Frascos de bolos escondidos. Sabores únicos de infâncias distantes. Quadros adquiridos aquando de viagens desejadas. Recordações de locais recônditos. Retalhos de tecidos envolventes em histórias contadas. Almofadas de sestas de alpendre. Mantas de balancés. Rabiscos guardados de épocas de virilidades. Assuntos esquecidos e assuntos proibidos.
Perco-me nas recordações do sótão. Local predilecto para nos escondermos. Brinco com bonecas preferidas, destapo carros arrumados, junto tachos e panelas. Viajo no tempo e ouço as nossas conversas. Recordo as combinações perfeitas, as confissões de primeiros amores e os planos de um futuro. Revoltas de proibições e contentamentos de quebras de regras.
Sentem-se cheiros do passado, recordam-se corridas até à cozinha. Saliva-se na recordação de biscoitos acabados de fazer. Balança-se ao som do vento. Relembram-se árvores cortadas e percebem-se fragilidades escondidas. Vontades perdidas e certezas vencidas. Curiosidades de épocas diferentes. Posturas distantes de quem nunca parecia ter tido infância. Rigidez fingida ou apenas adquirida. Fruto de uma época onde se crescia sem infância ou onde esta era uma responsabilidade. Sermos responsáveis porque somos crianças. Irónico nos dias que correm onde nem adultos assumem responsabilidades.
Procuro um dos dois mas não encontro semelhanças. Demasiado tempo passado. Interessante adivinhar qual dos dois será. O policia ou a dama antiga? A criada ou o engraxador? O cavaleiro ou a princesa? Impossível ter certezas. Pensando bem vive-se na mesma família e nunca chegamos a conhecer ninguém na sua essência. Quem foram? Quem gostariam de ter sido? O que pensavam na realidade numa época onde pouco era permitido pensar? Quantos desejos e segredos terão ficado por relatar? Quantas pessoas terão ficado por beijar? Quantas palavras terão ficado por dizer?
Equacionam-se tempos perdidos em discussões sem sentido. Revivem-se momentos de silêncio pouco aproveitados. Ciclos vividos e ciclos fechados pelo tempo. O tempo sempre o tempo. O mesmo que avança demasiado devagar quando pretendemos que avance depressa e, que acelera sempre que queremos que pare.
Arrependo-me vivamente de não os ter conhecido melhor. De não os ter visitado mais e de não lhes ter dado a atenção merecida. Mas é sempre assim. Perdemo-nos na nossa vida e esquecemos quem um dia fez parte dela. Adiamos repetidamente visitas porque a imagem nos assusta. Foge-se da velhice e foge-se do inevitável. Assusta-nos a pressa do tempo e a degradação do corpo. Preferimos não ver. O que não se vê atenua-se o que se vê sente-se.
Viro-me e digo que quero ficar com esta foto. Acenam-me com a cabeça de forma quase indiferente. Indiferentes às minhas palavras e indiferentes aos significados. Desconfio até que não me ouviram perdidos nos assuntos práticos. Sempre os assuntos práticos.
Olho novamente a foto e decido-me a viver. Decido-me a ser apenas eu no que quero, no que sinto e o que tenho vontade de fazer. Porque um dia também alguém me vai estar a arrumar aquilo que escolhi, as fotos que tirei e o que um dia fui. E no dia em que chegar ao fim quero dizer que valeu a pena ter vivido não pelo que adquiri mas pelo que senti.
Prometo-me apenas viver!!!
Texto de ficção escrito para a fabrica de historias