Terça-feira , 01 de Março DE 2011

Prometo-me

 

Surpreende-me o que juntamos num final de vida. Mas mais surpreendente é a forma como os outros se desfazem daquilo que um dia construímos, investimos e nos esforçámos para ter. Desfazem-se casas. Vendem-se recordações. Dos outros, porque para nós pouco ou nada significam. Distraímo-nos no que achamos graça e questionamos o porquê das coisas. Folheamos livros esquecidos, conhecidos e outros dos quais nunca ouvimos falar. Perco-me nos postais e nas notícias escritas numa letra invejável onde a tinta já sumida nos envolve em mistério.

 

Canecas de outros pequenos-almoços. Frascos de bolos escondidos. Sabores únicos de infâncias distantes. Quadros adquiridos aquando de viagens desejadas. Recordações de locais recônditos. Retalhos de tecidos envolventes em histórias contadas. Almofadas de sestas de alpendre. Mantas de balancés. Rabiscos guardados de épocas de virilidades. Assuntos esquecidos e assuntos proibidos.

 

Perco-me nas recordações do sótão. Local predilecto para nos escondermos. Brinco com bonecas preferidas, destapo carros arrumados, junto tachos e panelas. Viajo no tempo e ouço as nossas conversas. Recordo as combinações perfeitas, as confissões de primeiros amores e os planos de um futuro. Revoltas de proibições e contentamentos de quebras de regras.

 

Sentem-se cheiros do passado, recordam-se corridas até à cozinha. Saliva-se na recordação de biscoitos acabados de fazer. Balança-se ao som do vento. Relembram-se árvores cortadas e percebem-se fragilidades escondidas. Vontades perdidas e certezas vencidas. Curiosidades de épocas diferentes. Posturas distantes de quem nunca parecia ter tido infância. Rigidez fingida ou apenas adquirida. Fruto de uma época onde se crescia sem infância ou onde esta era uma responsabilidade. Sermos responsáveis porque somos crianças. Irónico nos dias que correm onde nem adultos assumem responsabilidades.

 

Procuro um dos dois mas não encontro semelhanças. Demasiado tempo passado. Interessante adivinhar qual dos dois será. O policia ou a dama antiga? A criada ou o engraxador? O cavaleiro ou a princesa? Impossível ter certezas. Pensando bem vive-se na mesma família e nunca chegamos a conhecer ninguém na sua essência. Quem foram? Quem gostariam de ter sido? O que pensavam na realidade numa época onde pouco era permitido pensar? Quantos desejos e segredos terão ficado por relatar? Quantas pessoas terão ficado por beijar? Quantas palavras terão ficado por dizer?

 

Equacionam-se tempos perdidos em discussões sem sentido. Revivem-se momentos de silêncio pouco aproveitados. Ciclos vividos e ciclos fechados pelo tempo. O tempo sempre o tempo. O mesmo que avança demasiado devagar quando pretendemos que avance depressa e, que acelera sempre que queremos que pare.

 

Arrependo-me vivamente de não os ter conhecido melhor. De não os ter visitado mais e de não lhes ter dado a atenção merecida. Mas é sempre assim. Perdemo-nos na nossa vida e esquecemos quem um dia fez parte dela. Adiamos repetidamente visitas porque a imagem nos assusta. Foge-se da velhice e foge-se do inevitável. Assusta-nos a pressa do tempo e a degradação do corpo. Preferimos não ver. O que não se vê atenua-se o que se vê sente-se.

 

Viro-me e digo que quero ficar com esta foto. Acenam-me com a cabeça de forma quase indiferente. Indiferentes às minhas palavras e indiferentes aos significados. Desconfio até que não me ouviram perdidos nos assuntos práticos. Sempre os assuntos práticos.

 

Olho novamente a foto e decido-me a viver. Decido-me a ser apenas eu no que quero, no que sinto e o que tenho vontade de fazer. Porque um dia também alguém me vai estar a arrumar aquilo que escolhi, as fotos que tirei e o que um dia fui. E no dia em que chegar ao fim quero dizer que valeu a pena ter vivido não pelo que adquiri mas pelo que senti.

 

Prometo-me apenas viver!!!

 

Texto de ficção escrito para a fabrica de historias

 

publicado por Marta às 12:30
Terça-feira , 15 de Junho DE 2010

Apontamentos de uma vida alterada pelo tempo

 

 

Quando recuo no tempo sei que tive sorte em ter infância, em partilhar momentos únicos com pessoas únicas, em ter-me sido ensinado o valor da família e sobretudo o valor de nós próprios. Ao recuar no tempo recordo tradições, recordo histórias que achava que nada significam e que retive até hoje, recordo lengalengas e canções muitas canções.

 

Ao recuar no tempo recordo os inúmeros animais de estimação que consegui levar para casa, recordo quedas com maiores ou menores consequências, recordo brincadeiras em castelos de verdade onde umas vezes era uma princesa e outras não sei bem o quê. Recordo programas de televisão, os primeiros computadores e as brincadeiras de rua.

 

Conta-se que não dei muito trabalho, que era gorduchinha e que todos me achavam bonita. E garanto-vos que esta era a mais pura das verdades. Não que os registos fotográficos fossem muitos mas porque os registos de memória dos tios e das tias, dos avós e dos primos assim o confirmam. Que o digam eles e eu sempre que ouço a expressão “estás tão diferente … eras tão bonita quando nasceste”

publicado por Marta às 00:05
Segunda-feira , 15 de Março DE 2010

Sentia-me Cansado ...

Sentia-me cansado. Cansado da vida que levava, dos problemas dos outros que se confundiam cada vez mais com os meus. Da minha vida que deixou de ser minha ou a dos outros que se misturava constantemente com a que um dia achei que me pertencia. Sentia-me cansado e esgotado. Existiam momentos em que simplesmente me apetecia desistir, mudar de vida seguir em frente por outro caminho. Não deixa de ser irónico, eu que passei a vida a orientar os outros sentir-me desorientado num esforço de orientação constante.

 

Depois, lembrava-me de todos os meus doentes, aqueles que acompanhava há anos, os que desistiam e voltavam, os que desistiam e nunca mais voltava a ver e os que ficavam apenas porque não tinham mais ninguém com quem falar. Por vezes procuravam em mim aquele amigo que nunca tinham tido. Sentia que era injusto que alguns pagassem por companhia, ou apenas para terem alguém com quem falar. Sentia que era injusto mas nunca fiz nada para o evitar. A solidão faz-nos fazer coisas incríveis, a solidão nunca é nem nunca foi boa conselheira. Por muito que analise a situação nunca vou saber quem se sentia mais só se eles se eu.

 

Não preciso de consultar ficheiros para me lembrar de todos eles. Lembro-me de cada um e de todas as patologias de que sofriam. Recordo os que se curaram, os que desistiram de viver e os que simplesmente achavam que viviam. Sei que quebrei as regras vezes sem conta. Perdi o número de vezes que deixei que a porta da emotividade se abrisse, que o distanciamento se encurtasse e que as emoções deles se tornassem nas minhas emoções.

 

Mudei efectivamente de rumo no dia em que ele entrou pelo meu consultório a pedir ajuda. Mudei de rumo, mudei de atitude mas mudei principalmente na forma de encarar a vida. A Maria Madalena tinha-me pedido que o atendesse, que lhe parecera aflito, que se eu ficasse mais uma hora valeria a pena. Estranhei o pedido e a interferência quando em 10 anos a trabalharmos juntos nunca ela tinha feito tal coisa. Não me lembro de ter conhecido mulher mais alegre do que ela, sempre sorridente, roupas justas, cabelo sempre de cores chamativas, maquilhagem pesada mas contudo sem me incomodar. Agora que penso nisso não deixo de pensar que era uma mulher bem interessante a Maria Madalena.

 

Ele, entrou-me no consultório com ar perdido mas postura segura. O seu cabelo ruivo em desalinho, os olhos azuis pareciam ter chorado durante dias seguidos, a combinação da roupa era despropositada e até cómica se não estivéssemos onde estávamos. Mal entrou perguntou-me pelo sofá. Respondi-lhe que não era meu hábito falar para os pacientes deitados. Riu-se, animou-se e começou a falar de uma quantidade de filmes onde os doentes se deitavam sempre que iam ao psicólogo. Perdemo-nos no tempo e nas risadas misturadas com as lágrimas dele e as minhas que teimavam em saltar. História de vida triste a daquele homem que contrastava com a forma dele a viver. Os olhos brilhavam com o que o entusiasmava e entristeciam-se com o que o magoara. Falava ininterruptamente, contava os factos analisava as questões que é como quem diz fazia as perguntas e dava as respostas. Eu deixei-me envolver de tal modo que foi ele que conduziu a consulta sem que me importasse.

 

Passaram 3 horas num ápice, recordo a gargalhada que deu quando olhou para o relógio e a forma como proferiu o “o diabo não basta a minha desgraça agora também você me vai levar á falência”. Fez-me rir. Não sorrir como era um hábito, mas rir com vontade. Lembro-me que dei uma gargalhada como há muito tempo não dava. Disse-lhe que não lhe levava nada que tinha sido um prazer conhece-lo que encarasse este tempo como uma pesquisa para mim. Sorriu e foi então que proferiu as palavras que fizeram a diferença.

 

“Sabe doutor eu vim cá porque todos dizem que é o melhor. Que me ia fazer bem falar consigo e tal e coiso. Ainda pensei duas vezes porque isto há uns anos era só para malucos e sabe como é ainda somos uma cambada de preconceituosos. Mas também se não desabafasse ficava maluco portanto já não tinha nada a perder. Agora que o conheci acho que é um homem triste, um homem só e um homem que ri pouco. Gostei deste bocadinho porque aliviei tudo o que ia na minha alma. Bem, e agora vou-me embora porque amanhã é outro dia e sabe como é eu posso abanar mas só vou cair quando morrer. Quanto si homem e permita-me que lho diga porque o senhor é que é doutor mas ria mais homem, deixe de ser tão sério e divirta-se porque a vida só vale a pena se a vivermos”.

 

Depois de ele se ter despedido deixei-me ficar ali não sei por quanto tempo. Pensei em tudo o que tinha planeado para a minha vida, no que fui adiando sucessivamente. Pensei nos amigos que se tinham afastado pela minha falta de tempo, pensei no que perdi ao ter deixado de viver para ter.

 

Hoje, encontro-me em Africa a dar apoio a refugiados de guerra. Hoje, encontro-me onde sinto que precisam de mim. Hoje, surpreendo-me com a esperança dos que aos olhos dos outros nada tem que esperar, surpreendo-me com o sorriso nos olhos daqueles que era suposto só chorarem, surpreendo-me nos que respeitam sem nunca terem sido respeitados. Hoje continuo a trabalhar até a exaustão, a ajudar quem precisa de ser ajudado, a encaminhar quem precisa de ser encaminhado. Só que hoje, graças a ele, eu trabalho com sentido, rio com vontade, choro sem vergonha e vivo orientado numa felicidade constante. Hoje penso nos livros que li, nos doutoramentos que tirei, nos mestrados que fiz. Hoje penso que todo um conhecimento científico foi completado apenas com o conhecimento comum, com a prática de um homem, com a análise empírica de quem apenas viveu e aprendeu.

 

 

Texto de ficção escrito por mim para a Fábrica de Histórias

 

publicado por Marta às 12:37

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